Histórico e Contexto
A Internet não inventou o boato

Uma rápida busca na internet, hoje, permite localizar e desmentir histórias de caráter duvidoso. Ao contrário do que se pode pensar, esse tipo de conteúdo enganoso não nasceu com a agilidade da internet, que chegou a diversas partes do mundo principalmente a partir dos anos de 1990. É muito provável que a circulação de conteúdo enganoso seja tão antiga quanto a história recente da humanidade. O homo sapiens tornou-se o grande vencedor da evolução, entre outros fatores, por saber se comunicar e viver em sociedade.

Como veremos a seguir, a formação de grupos ou redes – online ou offline – e a posição de seus integrantes é fundamental para a circulação de informações. Guarde esta sentença, pois ela irá fazer sentido mais tarde: a habilidade de compartilhar informações e influenciar pessoas é o que torna os seres humanos especiais. Esta frase aparece no livro “The Misinformation Age” (A Era da Desinformação, em tradução livre) , escrito por Cailin O’Connor e James Weatherall. Nele, os autores buscam descobrir como as crenças são criadas e se espalham pela sociedade.

Você conhece o cordeiro vegetal da tartária?

Se tivéssemos vivido nos séculos finais da Idade Média, é possível que tivéssemos tido contato com histórias sobre criaturas fantásticas e animais-planta. Uma das mais famosas é a do “Cordeiro vegetal da Tartária”, atribuída às memórias do cavaleiro Sir John Mandeville, no Século 14. Em uma de suas viagens, dizia ter encontrado uma árvore indiana que carregava frutos comestíveis semelhantes a pequenos cordeiros. Há quem diga que esta história também ajudaria a explicar a origem do algodão produzido na Índia: de cordeiros que cresciam em árvores.

Descobriu-se, mais tarde, que Mandeville tinha um ímpeto mentiroso – e que rizomas manipulados artisticamente para se parecer com animais provavelmente deram origem ao mito. Mesmo assim, diversos viajantes continuavam a circular pela região da Tartária (hoje Rússia e Mongólia) em busca dos cordeiros. Este caso é ilustrativo e suas lições podem ser transportadas da Idade Média para a atualidade, em que há dificuldade de rastrear a origem da desinformação e de desfazer uma crença consolidada.

Campanhas de difamação também são antigas. É possível que você tenha ouvido uma referência à suposta frase de Maria Antonieta na Revolução Francesa “se não há pão, que comam brioches”, que provavelmente nunca foi dita pela princesa, alvo frequente de “pasquins” da imprensa panfletária da época por seu comportamento extravagante. Segundo historiadores, a frase foi publicada pelo filósofo francês Jean Jacques-Rousseau em “Confissões” em tom de anedota. Casos dessa natureza levantam questões sobre a intencionalidade de produção e circulação do conteúdo.

Não é possível afirmar que todo conteúdo duvidoso é criado com a finalidade de atingir a reputação de alguém ou de alguma instituição. O problema é que, em grupo, há maior tendência dos indivíduos em agir de modo irracional – seja acreditando em algo, seja espalhando um boato.

"O Borometz" ou "O Cordeiro Cítico" da Connubia Florum, por De La Croix, 1791, reproduzido no livro The Vegetable Lamb of Tartary: A Curious Fable of the Cotton Plant por Henry Lee, 1887. The Internet Archive, Universidade de Toronto.

Redes sociais

Incertezas e tomadas de decisão

Como dizem O’Connor e Weatherall em “The Misinformation Age”, são as crenças – veremos sua definição na seção “Não é questão de opinião”- que orientam ações simples do dia a dia (será que vou misturar melancia com leite?), mas também influenciam a tomada de decisão em temas complexos, como política, economia, saúde e meio ambiente. Com base em 2020, podemos incluir a pandemia de Covid-19 no escopo da saúde.

Em geral, pessoas não lidam bem com lacunas e incertezas. A falta de respostas e o avanço do desconhecido formam um terreno propício para a desinformação. Tal como políticos populistas, o conteúdo duvidoso que circula pela internet também oferece soluções simples para problemas complexos. Ou mesmo distorcem discursivamente as evidências, criando a ideia de que não há consenso científico sobre um tema – tal como acontece no debate sobre mudanças climáticas e como ocorreu na segunda metade do Século XX, em que companhias produtoras de cigarro trabalharam para desfazer a correlação entre o câncer e o consumo de tabaco. Hoje, como se sabe, existem alertas sobre o risco de câncer e outros efeitos em embalagens de cigarro.

A desinformação transita por meio de redes de conversação e se espalha. Para compreender como isso acontece, é preciso olhar para sua estrutura.

Redes sociais são constituídas dentro e fora da internet. Em ambos os casos, existem pessoas-chave que possuem maior importância na rede e, por isso, apresentam grande potencial para atingir comunidades inteiras por meio de seus discursos. Políticos, celebridades e influenciadores digitais estão entre elas, pois têm capacidade de fazer chegar longe uma mensagem.

Por isso, é preciso ficar atento aos que prometem fornecer informações afastadas do crivo da imprensa – a priori, plataformas como Facebook, Instagram e Twitter não interferem no conteúdo publicado e, por isso, não há garantias de que alguém tenha verificado antes da publicação. Parcerias dessas plataformas com redes de checagem de fatos emitem alertas em casos escancaradamente duvidosos, mas é preciso ficar alerta o tempo inteiro.

Redes são compostas por nós (pessoas) que interagem. Em plataformas como o Twitter, as interações entre os usuários tornam-se ainda mais claras, e a formação de clusters (grupos menores compostos por pessoas muito engajadas em torno de um tema) sugerem que pode haver grande mobilização no ambiente virtual.

Experiências e influências​

Humanos aprendem a partir da sua própria experiência e da experiência de outros. Essas experiências costumam ser compartilhadas em grupos específicos, dentro e fora da internet, que seguem a mesma cartilha. Embora a internet seja potencialmente um espaço democrático, a tendência é que as pessoas se aproximem e formem grupos com outras pessoas que pensem de maneira parecida. É neste cenário que um conteúdo de origem irrastreável pode se espalhar e reverberar, já que existe potencial de retroalimentação dos mesmos tipos de tópico (aqui entram as câmaras de eco ou bolhas), sem espaço para o contraditório.


No dia a dia, pessoas nas quais confiamos também tendem a nos influenciar de alguma forma em nossas redes – resistimos em acreditar que um de nossos amigos ou familiares nos enviaria algum conteúdo duvidoso, por exemplo. Grupos privados de Facebook e de WhatsApp, cujas interações se mostram difíceis de mapear, são particularmente problemáticos neste sentido. Crenças que circulam nesses espaços são levadas para o dia a dia e geram impacto sobre o cotidiano.

Nas redes sociais digitais, o potencial de circulação de um conteúdo é muito maior do que fora desse espaço. Às plataformas interessa o tempo que o usuário passa em suas estruturas e o quanto é capaz de engajar a sua rede. Suas próprias características também são propícias para a produção e a circulação de um determinado tipo de conteúdo – a brevidade do Twitter, por exemplo, acaba por incentivar frases curtas e inflamadas de até 280 caracteres. A tendência é que as pessoas interajam de forma assídua e enfática com o tipo de conteúdo que reflete os seus sentimentos em relação a um tema – é por isso que memes possuem grande apelo nas redes sociais. Esse comportamento se estende às notícias ou outros produtos por meio do viés de confirmação, que é um viés cognitivo que leva as pessoas a consumirem conteúdos com os quais concordam.


Humanos aprendem a partir da sua própria experiência e da experiência de outros. Essas experiências costumam ser compartilhadas em grupos específicos, dentro e fora da internet, que seguem a mesma cartilha. Embora a internet seja potencialmente um espaço democrático, a tendência é que as pessoas se aproximem e formem grupos com outras pessoas que pensem de maneira parecida. É neste cenário que um conteúdo de origem irrastreável pode se espalhar e reverberar, já que existe potencial de retroalimentação dos mesmos tipos de tópico (aqui entram as câmaras de eco ou bolhas), sem espaço para o contraditório.

No dia a dia, pessoas nas quais confiamos também tendem a nos influenciar de alguma forma em nossas redes – resistimos em acreditar que um de nossos amigos ou familiares nos enviaria algum conteúdo duvidoso, por exemplo. Grupos privados de Facebook e de WhatsApp, cujas interações se mostram difíceis de mapear, são particularmente problemáticos neste sentido. Crenças que circulam nesses espaços são levadas para o dia a dia e geram impacto sobre o cotidiano.


Nas redes sociais digitais, o potencial de circulação de um conteúdo é muito maior do que fora desse espaço. Às plataformas interessa o tempo que o usuário passa em suas estruturas e o quanto é capaz de engajar a sua rede. Suas próprias características também são propícias para a produção e a circulação de um determinado tipo de conteúdo – a brevidade do Twitter, por exemplo, acaba por incentivar frases curtas e inflamadas de até 280 caracteres.

A tendência é que as pessoas interajam de forma assídua e enfática com o tipo de conteúdo que reflete os seus sentimentos em relação a um tema – é por isso que memes possuem grande apelo nas redes sociais. Esse comportamento se estende às notícias ou outros produtos por meio do viés de confirmação, que é um viés cognitivo que leva as pessoas a consumirem conteúdos com os quais concordam.

O engajamento pelas emoções

No livro “Os engenheiros do caos”, Giuliano da Empoli deixa claro que as emoções são o principal ingrediente para o conteúdo que gera engajamento nas redes sociais. A obra traz o relato do estrategista Andy Wigmore na campanha em favor do Brexit – saída do Reino Unido da União Europeia. Ele afirma que conteúdos sobre economia e temas semelhantes reuniam um baixo número de curtidas em sua campanha – cerca de 3 a 4 mil -, enquanto publicações com apelo emocional atingiam de 400 mil a 3 milhões de curtidas. Como veremos a seguir, os algoritmos contribuem para isso.

A insatisfação social combinada à ascensão de políticos com discursos raivosos e direcionados a um inimigo invisível, viabilizados principalmente por meio dos sites de rede social, contribuíram para o avanço de políticos populistas e de movimentos de extrema-direita no mundo. Mais do que políticos, Donald Trump (EUA), Boris Johnson (Reino Unido) e Jair Bolsonaro (Brasil) tornaram-se personagens que propagam absurdos na contramão do politicamente correto.

Da Empoli traduz este fenômeno em seu livro: “A indignação, o medo, o preconceito, o insulto, a polêmica racista ou de gênero se propagam nas telas e proporcionam muito mais atenção e engajamento que os debates enfadonhos da velha política. Os engenheiros do caos estão bem conscientes disso.”

Justamente por evocar esses sentimentos, os políticos populistas não podem abrir mão dos absurdos que divulgam em suas redes, pois precisam manter seus grupos engajados. Alimentados por conteúdos que distorcem discursos e evidências e flertam com temas caros a esses políticos conservadores, seus seguidores sentem como se fizessem parte de um grupo especial e quase exclusivo de poucas pessoas que sabem, “de verdade”, o que acontece. Quem não gosta de se sentir especial, não é mesmo?

No Brasil, embora 85% da população estivesse preocupada com a circulação da desinformação no período pré-eleitoral de 2018 – atualmente, esta preocupação se materializa principalmente no WhatsApp (ver mapa abaixo) -, a maior parte das pessoas busca informações nos sites de rede social, especialmente no Facebook (54%), WhatsApp (48%), YouTube (45%) e Instagram (30%). Os dados são do Digital News Report de 2018 e de 2020.

Em linhas gerais, o mapa revela que, no mundo, o Facebook é a maior fonte de preocupação do público em relação à disseminação de desinformação. A seguir, veremos qual é o papel dos algoritmos nessa história.

Os famosos algoritmos

Você já deve ter ouvido falar de algoritmos ou algoritmos de recomendação. Na ciência da computação, um algoritmo é uma sequência finita de instruções que buscam obter determinado resultado ou solução. Embora pareça algo pouco palpável e quase de outro planeta, os algoritmos são escritos por seres humanos e derivam do pensamento computacional. Então, a máxima que terceiriza o problema e defende que “a culpa é dos algoritmos” não se sustenta.

Nas redes sociais digitais, em que pouco se sabe sobre esta série de instruções escrita em linguagem de programação, os algoritmos de recomendação são aqueles que, com base no histórico de um usuário, sugerem outro conteúdo que possa agradar. Tudo isso, claro, com o intuito de fazer com que o usuário passe mais tempo dentro da plataforma – afinal, é assim que as empresas de rede social obtêm lucro. 

Neste ponto, vale um alerta: é fato que todos nós fazemos nossos cadastros nessas redes sociais gratuitamente; e também é fato que mesmo sem cobrar do usuário final a empresa precisa obter lucro de alguma forma. Nestes casos, os dados dos usuários são a matéria-prima para monetizar e recomendar conteúdo e publicidade direcionada.

Como dissemos anteriormente, o YouTube serve de fonte para cerca de 45% dos brasileiros. Entre os estadunidenses, o percentual é de 24%, conforme dados do Digital News Report. Em ambos os países, é perceptível o papel de protagonismo que as redes sociais desempenharam em eleições recentes.

Em países como a Alemanha, o uso de sites e redes sociais digitais para acesso às notícias registrou significativo crescimento ao longo dos anos – de 63% da população, em 2013, para 69%, em 2020 -, mas a televisão ainda é o meio mais utilizado para a obtenção de informações. Entre os 2.011 entrevistados em abril de 2020 para o Digital News Report, em amostra representativa da população, 72% indicaram o uso da televisão. Este percentual demonstra, a propósito, que houve um pequeno aumento na busca por fontes tradicionais em meio à pandemia de Covid-19. Em janeiro, quando ainda havia conhecimento limitado em relação às proporções da doença, o percentual de respondentes que se informava pela televisão era de 70%. 

Redes sociais como Instagram, Snapchat e TikTok, por sua vez,  foram utilizadas principalmente pelos jovens de 18 a 24 anos na Alemanha para obter informações sobre a Covid-19 em abril de 2020. Entre os respondentes desta faixa etária, a maior parte (38%) apontou o uso do Instagram para tal finalidade. Na sequência foram citados Snapchat (10%) e TikTok (8%).  

De maneira geral, nos países em que há confiança no governo e menor polarização política – a exemplo de Holanda, Alemanha e Dinamarca – há também menor preocupação com a disseminação de desinformação na internet. 

Na Alemanha, por exemplo, há um bom índice de confiança na imprensa. Segundo dados do Digital News Report, 45% dos respondentes disseram confiar nos meios de comunicação com frequência. Entre as 40 nações avaliadas no relatório, a Alemanha ocupa a décima posição, situando-se entre os países que mais confiam no trabalho jornalístico. Entre outros aspectos, isso se deve à confiança depositada nas emissoras e grupos públicos de mídia, a exemplo de ARD e ZDF. Além da televisão, o trabalho desenvolvido por jornais locais e regionais ajuda a elevar a confiança na imprensa. Vale lembrar que, na Alemanha, a população contribui regularmente, por meio de impostos, para manter e acessar os veículos públicos de comunicação.

Algoritmos de recomendação e desinformação

No livro “Os engenheiros do caos”, Giuliano da Empoli demonstra que os algoritmos de recomendação do YouTube exerceram papel fundamental na difusão e no controle ao Zika vírus, no Brasil, por conta de vídeos conspiracionistas lançados ainda em 2015, quando médicos tentavam distribuir vacinas e larvicidas para conter os mosquitos responsáveis por espalhar o vírus. Por conta desses vídeos, pais e mães deixaram de submeter seus filhos aos procedimentos de saúde necessários.

A onda de desinformação associada à vacinação também corre o mundo nos últimos anos, e tem impacto na vida cotidiana. No Brasil, entidades da área da saúde observam uma queda alarmante nos índices de vacinação contra o sarampo e a poliomielite, por exemplo. Fenômeno semelhante ocorre em relação à Covid-19: mesmo que a vacina ainda esteja em fase de desenvolvimento, pesquisas de opinião pública detectaram a falta de disposição de parte da população em buscar a imunização. 

Vídeo com explicações sobre o Zika Virus

Durante a pandemia, conteúdos de desinformação alarmaram a população. Devido às postagens mentirosas, estabelecimentos comerciais tiveram de adotar novas estratégias para medir a temperatura das pessoas, por exemplo. Diversas agências de checagem de fatos desmentiram o conteúdo, mas não foi o suficiente para mudar a percepção de boa parte do público.

Na Alemanha, iniciativas de jornalismo investigativo como o Correctiv também listaram uma série de textos normalmente difundidos ao longo da crise sanitária de Covid-19, classificando-os como falsos e fora de contexto. Em parceria com outras organizações europeias, o Correctiv criou um guia visual para mapear os casos mais recorrentes de desinformação na Europa, como um suposto teste respiratório para verificar o contágio de Covid-19, além do uso de alguns tipos de medicação sem eficácia comprovada e medidas caseiras para prevenção e cura da doença. A Rede Internacional de Fact-Checking (International Fact-Checking Networking – IFCN) também apresenta, em sua página na internet, uma sistematização dos tipos de desinformação que frequentemente circularam pelo mundo durante a pandemia. 

Nos últimos anos, o tom alarmista também vem atingindo outras áreas, como a economia. Desde 2018, quando circulou muita desinformação em torno da greve dos caminhoneiros, instalou-se um clima de que, a qualquer momento, paralisação semelhante poderá acontecer e o país entrará em colapso. 

Impacto Político

Ainda que a desinformação seja capaz de atingir os mais variados temas, é na política que ela fica mais evidente. A morte da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, em março de 2018, foi cercada de conteúdo falso sobre sua vida pessoal e atuação política. Um dos mais famosos partiu de uma desembargadora que associou o nome de Marielle a criminosos, o que não era verdade.

As dinâmicas de circulação e compartilhamento de conteúdo nas redes sociais em tempos de insatisfação popular fomentaram a ascensão do conservadorismo ao poder no Brasil. Blogueiros e influenciadores de extrema-direita contribuíram para a radicalização ganhar espaço no país. Na campanha para as eleições presidenciais de 2018, a desinformação ganhou contornos significativos.

Pouco antes das eleições de outubro, a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem que abordava o envio de mensagens em massa pelo WhatsApp para beneficiar o então candidato Jair Bolsonaro, que se tornaria presidente. Para saber mais sobre o tema, confira esta entrevista da repórter Patrícia Campos Mello. Embora não seja possível atribuir o resultado das eleições unicamente às redes sociais, é fato que elas desempenharam papel crucial nessa escolha. Dinâmica semelhante se manteve em 2020, ano de eleições municipais.

Enquanto presidente eleito, Bolsonaro utiliza as redes sociais digitais, onde é bastante ativo com publicações e lives, como termômetro para balizar suas decisões – se alguma ação pega mal entre os seus eleitores, a tendência é que ele volte atrás para reverter a medida.

No Reino Unido, a disseminação de desinformação marcou o período anterior ao plebiscito sobre sua permanência na União Europeia. Em meio a mentiras relacionadas às questões territoriais e migratórias e manipulação de conteúdo que circulou nas redes sociais, a população decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia.c

Na avaliação de Giuliano Da Empoli, o Brexit foi mais um caso de insatisfação popular intensa que permitiu, nas redes sociais digitais, a construção de uma operação política. Neste caso, a Europa era o bode expiatório imaginário que servia de alvo para a insatisfação das pessoas.

Nos Estados Unidos, antes mesmo de ter sido eleito presidente, em 2016, Donald Trump já preparava o terreno. Ainda em 2008, logo após a eleição de Barack Obama, Trump levantava dúvidas sobre o local de nascimento do democrata. Apesar da comprovação por parte da Casa Branca de que Obama de fato nasceu nos Estados Unidos, a dúvida estava lançada, e havia uma atmosfera conspiratória instalada.

Por falar em conspiração, um dos principais boatos que rondou a campanha presidencial nos Estados Unidos, em 2016, foi a suposta rede de pedofilia comandada por Hillary Clinton, adversária de Trump. Um homem de 29 anos soube do caso (inverídico, é bom ressaltar) por amigos e instalou internet em sua casa para averiguar as “evidências”. Como resultado, abriu fogo contra uma pizzaria em Washington – que seria o local de operações da suposta rede. Mais um caso em que a desinformação saiu das redes sociais para habitar o universo offline.

Em sua obra, Da Empoli diz que, nos Estados Unidos de 2016, os critérios de escolha dos políticos em quem votar eram os mesmos utilizados para celebridades: qual é a capacidade desta pessoa em chamar a atenção e o quanto me reconheço neste candidato? A agressividade de Trump e outros políticos que se utilizam de plataformas digitais como espaço de propulsão das ideias desafia convenções e transmite uma ideia de energia capaz de transformar cenários. Com as redes sociais em jogo, vence o político que conseguir angariar o maior número de adesões – pelo viés emocional, principalmente. 

Durante o seu mandato, Trump criticou duramente a imprensa, a quem chamava de “fake news” ao criticar publicações distintas de seu ponto de vista. Em 2020, quando concorreu à reeleição e perdeu para o democrata Joe Biden, Trump discursou publicamente e a transmissão do pronunciamento foi interrompida por emissoras de televisão por propagar mentiras deliberadamente. Entre elas, ao dizer, sem provas, que as eleições haviam sido fraudadas.

No livro “Pensamento crítico”, Walter Carnielli e Richard Epstein explicam que é difícil combater a desinformação devido à dificuldade de identificar fontes e intenções. Além disso, a desinformação muda a atenção do importante para o irrelevante e promove o emocional em substituição à resposta racional – por esse e tantos outros motivos, põe a democracia em risco.

Ao mesmo tempo, a desinformação causa confusão entre crenças, opiniões, fatos e argumentos, estimulando, mesmo em discursos preconceituosos e inflamados, que alguém se aproprie equivocadamente da máxima “esta é minha opinião”. Veremos, a seguir, as principais diferenças entre essas palavras – e o quão falacioso é evocar este tipo de afirmação.

Não é questão de opinião

Discursos preconceituosos, violentos e recheados de absurdos justificados sob a lógica do “esta é minha opinião” representam perigo em tempos de desinformação. Na obra “Pensamento crítico”, Walter Carnielli e Richard Epstein distinguem as definições de opinião, crença, fato e argumento. Dessa forma:

Crença: ideia ou convicção que alguém aceita como verdadeira ou real.

Opinião: declaração ou manifestação de uma ideia que reflete uma crença. É pessoal e pode ter conteúdo emocional.

Fato: algo que pode ser provado verdadeiro. Exemplo: células humanas têm 23 pares de cromossomos. Embora eu não veja uma célula, pesquisas científicas (fontes confiáveis, portanto) provam que sim.

Argumento: Um bom argumento precisa apresentar boas razões para que a premissa que levará à conclusão seja verdadeira. Os fatos garantem a verdade das premissas. As premissas precisam conduzir, estabelecer ou sustentar a conclusão.

Este trecho resume a argumentação dos autores:

“Fica claro então que crenças e opiniões são subjetivas e podem estar erradas, enquanto fatos são objetivos e argumentos buscam convencer sobre a verdade. Crenças, ainda que verdadeiras e embasadas em evidências, não se confundem com opiniões, nem com fatos, e nem com argumentos. Um argumento é uma busca pela verdade, e não coincide com o processo de persuadir.”

Apelar para o direito à crença, dizem os autores, é fugir da discussão racional sobre um tema. As crenças e as emoções estão ligadas ao viés de confirmação da qual os conteúdos fabricados se apropriam. Mesmo tendo recebido evidências de que suas crenças estão equivocadas, é difícil que uma pessoa mude sua percepção sobre determinado tema.

O efeito caravana (muitas pessoas acreditam na mesma coisa) e a cascata repetitiva (conteúdo torna-se plausível devido à grande circulação no espaço público) são estratégias utilizadas para fabricar e disseminar desinformação.

Uma das formas de se proteger e analisar as publicações de caráter duvidoso é através do pensamento crítico, que serve de base para avaliar as premissas dos argumentos racionais.

Medidas de combate à desinformação

Diante da onda crescente de desinformação nas mídias digitais, plataformas como Google, Facebook e Twitter, que são donos dos principais canais de disseminação de conteúdo na internet (o YouTube pertence ao Google e o Instagram ao Facebook), estabeleceram parcerias com organizações de fact-checking (checagem de fatos). Cada rede social segue critérios próprios para comunicar o usuário quando fact-checkers identificam problemas em conteúdos virais. Em 2020, o Instagram colocou um aviso de informação falsa em stories do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, sobre Covid-19; o Twitter retirou do ar publicações falsas do presidente dos EUA, Donald Trump, também sobre a pandemia do novo coronavírus.

Quem faz essa verificação de postagens virais potencialmente enganosas são integrantes da Internacional Fact-checking Network (IFCN). Essa rede tem signatários no mundo todo, os quais devem seguir cinco princípios norteadores: 

  1. Transparência em relação ao método de checagem: o caminho feito para comprovar ou desmentir um fato;
  2. Transparência em relação às fontes: indicar as referências, sempre que possível, com hiperlinks; 
  3. Transparência em relação ao financiamento: quem são os patrocinadores, anunciantes ou doadores que mantêm a operação; 
  4. Apartidarismo: não são credenciadas organizações que pertencem a um partido político ou órgão de governo;
  5. Transparência em relação a correções: se um erro for identificado, deve ser admitido e corrigido publicamente.

Mas o fact-checking é mais velho do que as redes sociais digitais que você está acostumado a usar. A origem dessa prática remonta a 1991, quando Brooks Jackson, âncora de telejornal da rede CNN, nos EUA, apresentou um quadro em que confrontava falas dos candidatos na campanha à Casa Branca durante as primárias da eleição estadunidense. Anos mais tarde, em 2003, esse jornalista criou o site FactCheck.org, que foi sucedido por outras iniciativas, como o The Washington Post Fact Checker, que usa a ilustração do personagem Pinóquio para classificar a (falta de) veracidade das informações, e o PolitiFact, que criou um termômetro para medir as mentiras dos discursos públicos. O PolitiFact recebeu um Prêmio Pulitzer, o mais importante do jornalismo nos EUA, em 2009, dando visibilidade a esse formato jornalístico que tinha como propósito expor as contradições, principalmente de políticos, e constrangê-los a se comprometer com a verdade, oferecendo aos cidadão dados verificados para tomar suas decisões sobre, por exemplo, em quem votar. 

Essa foi a inspiração também dos veículos brasileiros especializados em checar fatos, que deram os primeiros passos na campanha eleitoral de 2014. Com o passar do tempo, os esforços dos checadores foram para outra direção, a do debunking. Parece a mesma coisa, mas não é. No fact-checking, buscamos evidências factuais, ou seja, provas da veracidade de um fato, que podem ser pesquisas, documentos, estatísticas, etc., para mostrar eventuais imprecisões e corrigir declarações. Já no debunking, a busca é pelos traços de manipulação de informação, seja por meio de edição de imagem, distorção de contexto, etc. Muitas vezes, fact-checking e debunking andam juntos, porque nem só de dados imprecisos se faz um debate público desinformado, em várias situações eles são acompanhados de conteúdos manipulados ou retirados de contexto (relembre os tipos de desinformação na seção Conceitos).

Paralelamente à checagem de fatos, diversos países têm discutido normas legais para combater a desinformação. A Alemanha foi uma das primeiras nações europeias a estabelecer leis mais rígidas para responsabilizar plataformas e usuários pelo compartilhamento de conteúdo enganoso e discurso de ódio. Desde 2018 vigora uma legislação sobre transparência na internet, que já resultou até mesmo na aplicação de uma multa de 2 milhões de euros ao Facebook por violar as regras alemãs. Essa norma é uma das inspirações para o “PL das fake news”, como ficou conhecido o projeto de lei brasileiro aprovado pelo Senado em 2020, ainda em tramitação na Câmara dos Deputados. 

Mesmo com regras duras, a Alemanha não está livre da desinformação nas redes sociais, que atinge até mesmo as mais altas lideranças políticas do país. Criticada por sua política em meio à crise de refugiados do Oriente Médio em direção à Europa, chanceler alemã Angela Merkel vem sendo alvo de campanhas de desinformação desde 2015, tanto que um relatório da União Europeia alertou para o risco de conteúdos enganosos influenciarem na eleição alemã de 2017. Ao se retirar da vida pública para fazer quarentena no início da pandemia do novo coronavírus, em março de 2020, Merkel foi novamente envolvida em boatos na internet, como recupera esta reportagem do Deutsche Welle. Posts enganosos inventavam que ela estaria em um abrigo antiaéreo em sua casa de campo no Paraguai ou que a quarentena era só uma desculpa e a premiê jamais voltaria ao poder. 

O pesquisador Thorsten Quandt, chefe de uma pesquisa da Universidade de Münster que analisou 120 mil postagens no Facebook deu a esse fenômeno o apelido de “populismo pandêmico”, pelo qual mídias “alternativas” de extrema direita constroem um sistema próprio de referências, adicionando especulações e mentiras a notícias verdadeiras publicadas por veículos da imprensa de referência. 

Como vimos, a confusão entre crenças, opiniões e fatos é uma característica da desinformação. Por isso, checagem de fatos e legislação por si só não são suficientes para vencer essa batalha. É preciso desenvolver o pensamento crítico para promover uma análise consciente dos conteúdos que se espalham pelas redes digitais.